sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Ensaio sobre a Cegueira Sumário

A questão da Cegueira

A obra de José Saramago é profundamente marcada pela análise e reflexão sobre a condição humana. Num mundo civilizado, consciente dos seus progressos e feitos civilizacionais, mergulhado num soberba arrogância, o Homem emerge como confessado autor e proprietário do Destino, da Fortuna e dos infinitos segredos do Mundo. Saramago reconhece neste Homem, a autoridade das suas conquistas históricas, culturais, sociais, económicas e políticas e, é nesse reconhecimento que desperta um olhar sobre o Homem actual, adormecido pelas comodidades de um mundo materialista, consumista, hedonista que subsiste embriagado pela abundância. Andamos cheios de nós próprios! Convencidos de que a civilização que construímos é o melhor dos destinos, o mais perfeito produto de um esforço civilizacional que se traduz numa sociedade suspensa sob ténues princípios. Ao Homem actual, Saramago retira-lhe apenas um predicado - a visão -, como se de uma marioneta se cortasse apenas um fio e, neste acto, faz mergulhar toda a civilização - com todos os produtos culturais, os pesados patrimónios, as imemoráveis histórias, as afirmadas identidades - no mais animalesco, primitivo caos. Ao retirar a visão reduz o Homem civilizado à sua condição primitiva, ao instinto de sobrevivência que o impele a defender o seu território, a disputar a comida ou a matar os seus concorrentes. A Civilização definha porque os alicerces sobre os quais se ergueu são frágeis, porque os agentes reprodutores de um modelo de civilização demitiram-se de passar o testemunho para as gerações futuras. No fundo, andamos todos cegos, algo nos turva o olhar - a ignorância, a indiferença, o comodismo, o medo.

A Mulher do Médico

Um povo sem memória é um povo sem História. O património é um registo que permite aos povos ter uma identidade e perpetuar a sua memória ao longo de gerações. Sem registo, os factos ou acontecimentos, as pessoas ou lugares, sucumbem às duas armas do tempo: o silêncio e o esquecimento. Se sobre determinada realidade emerge a impenetrável muralha do esquecimento, porque sobre ela não se fez registo, então é como se essa realidade, esse algo nunca tivesse, na verdade, acontecido. Na obra de Saramago, alguém devia registar aqueles extraordinários acontecimentos, caso contrário, o tempo acabaria por erguer um véu de silêncio, indiferença e,por fim, esquecimento. A esposa do médico é a personagem que regista a história e, com o seu relato, encarrega-se de criar uma memória. Ela é Saramago, ela é o narrador. Alguém tem de contar a história. Há um denúncia evidente, num mundo que avança vertiginosamente para a ditadura do imediato, do instantâneo, a importância da memória e, consequentemente do registo, é fundamental para compreender quem somos. A questão da Memória Colectiva é fundamental para a identidade cultural dos povos. Hoje demoniza-se a diferença e exorta-se a Igualdade. A diferença cultural, a identidade e património sucumbem ao postulado da padronização e economização das culturas, tornando-nos todos igualmente consumidores, indiferentes, desconfiados, discriminatórios, intolerantes e cegos. Democratizámos a ignorância porque deixámos de resgistar, de criar Memória.

Momentos de Redenção

O particular momento do cão das lágrimas pelo qual Saramago disse que queria ser recordado, essa é a personagem que, num momento de fraqueza da esposa do médico, limpa-lhe as lágrimas e, com este gesto, traduz, mais do que uma intenção, um imperativo: vale a pena! Vale a pena denunciar. Vale a pena contar, apontar o dedo de denúncia, erguer-se contra o estado as coisas, vincar posições, estar atento, registar. Saramago quer ser essa figura que nos limpa as lágrimas -atravès das suas obras - quando sucumbimos ao inevitável: “será que vale a pena?”

A água

As personagens têm dois momentos de redenção carregados de simbolismo, em ambos, a água surge como elemento de purificação, de karthásis. Como que limpado as ímpias acções que foram obrigados a fazer.

A música

As personagens têm um momento de ascese - uma elevação, para lá da condição animalesca e primitiva -, a música permite-lhes recordar a condição humana, porque a arte é pergaminho exclusivo de um único animal -o Homem. É a arte que o eleva a uma outra condição no reino animal, porque ao Homem é possível criar e a arte manifesta-se do que de melhor o Homem tem - a inteligência. A experiência artística permite a cada um despertar um ideário muito particular - ao fecharem os olhos cada um imagina e recorda pessoas, lugares, gestos e sensações que só a ele pertencem.

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